quinta-feira, 28 de fevereiro de 2008

Conto

Lições de Mestre

Em 1968 tive o meu primeiro encontro com a minha primeira professora de teoria literária. Cheguei à sala e logo ela mandou que eu me sentasse, pois já passava das nove horas. Peguei a apostila e comecei a ler, pois uma hora mais tarde eu deveria lhe entregar as questões respondidas. E por cada resposta errada, eu recebia uma punição diferente. Foi desta maneira, durante toda a graduação, que adquiri a experiência e o conhecimento que utilizaria com as minhas alunas.

Hoje, volto à universidade onde fui graduando, como professor. Devo muito a este lugar, principalmente porque ele me proporcionou a convivência com a minha querida mestra, já falecida. Leciono teoria literária, como ela, mas gostaria também de dedicar-me ao ensino de literatura inglesa, quando poderia trabalhar com mais profundidade textos dos meus autores prediletos, em especial, Allan Poe.

Quando entrei na sala, ela foi a primeira pessoa que eu vi. Estava de pé ao lado do quadro. Os seus cabelos pretos e os óculos de grau me remeteram de imediato a minha professora de teoria literária. Fui flagrado fitando o seu corpo quando ela olhou pro lado. Eu desviei o meu olhar para outra parte da sala. Ela perguntou:

- É o senhor o professor?

- Sim, sou eu. Podemos começar?

- Claro!

Ela escolheu uma carteira na primeira fileira e sentou com as pernas cruzadas uma sobre a outra. Eu me apresentei a toda a turma e tive uma conversa descontraída sobre literatura com as meninas. Perguntei se elas costumavam ler com freqüência, o que cada uma gostava, quais eram os seus autores prediletos, enfim, procurei conhecer um pouco das minhas alunas. E no final, passei a leitura de dois textos:

- Para a próxima aula, o texto “Porque ler os clássicos” de Ítalo Calvino. E como leitura facultativa, fica a sugestão do conto “Os crimes da rua Morgue” de Edgard Allan Poe. As ruas parisienses guiarão vocês entre fantasia e mistério, a inquietação é garantida durante a leitura deste conto.

Enquanto eu me preparava para sair da sala, a Sofia se aproximou da mesa:

- Professor, eu fiquei atraída pelo o que o senhor falou sobre o conto. Ainda não conheço este autor, mas acredito que a leitura será agradável.

- Se quiser, em casa, eu tenho outros títulos que posso te emprestar.

- Adoraria. Posso pegá-los hoje?

- Claro, vamos. Você ainda terá a chance de saborear um mocha, cappuccino com calda de chocolate, que aprendi a fazer com um amigo inglês. Adoro cafés, por isso comprei uma cafeteira semi-profissional. Posso preparar um para você enquanto escolhemos os contos que eu te emprestarei.

- Hum, bom, né? – ela disse, sorrindo.

No fim do dia, encontrei a Sofia e seguimos para a minha casa a pé, pois eu morava a duas quadras da universidade e optava por ir e voltar andando. Conversamos pouco durante o caminho e ao chegar à rua da minha casa não havia viva alma. Permanecemos calados, então eu praticamente só ouvia o som da sua respiração. Chegamos, eu pedi que ela permanecesse na sala e fui pegar os contos. Enfim, preparei o café, servi, e falei um pouco dos contos:

- Do Allan, os meus preferidos são “Manuscrito Encontrado numa Garrafa”, “William Wilson”, “O demônio da perversidade” e o que indiquei para vocês na sala. Pode levar todos, já li tantas vezes que sou capaz de repetir algumas frases. Ah, tenho uma sugestão. Já que você é uma aluna tão interessada, volte no sábado pela manhã, às nove, quando já terá lido alguns contos e poderemos estudar melhor.

- Será uma espécie de aula particular?

- Serão duas pessoas conversando sobre um assunto de interesse comum.

- É, mas o senhor tem mais experiência do que eu. Eu não tenho tanto a te oferecer.

- E eu sou um professor, ora. Faz parte do meu di-a-dia transmitir minhas experiências aos alunos.

- Obrigada pelo café e pelos contos, professor Clóvis. Até o sábado.
Dois dias depois...

- Pontualidade inglesa! Sente-se, preparei um café para você. Como foi a leitura?

- Inquietante. Li cada um a um só fôlego.

- Inquietante, como eu disse na sala de aula. Bem, proponho, para começar, um jogo. Eu te faço algumas perguntas sobre os contos. Certo?

- Certo.

- Mas para cada questão que você errar, receberá uma punição, combinado?

- Uma punição?

- Não se preocupe, menina, um professor nunca faria mal a um aluno. A punição, de certo modo, servirá de aprendizado.

- Tudo bem, se é pela experiência, combinado.

Então vamos ao que interessa, à primeira pergunta. Quais jogos são citados no início do conto “Os crimes da Rua Morgue”?

- Hum... Xadrez, damas... Hum... Tinha mais um que não consigo lembrar!

- Uíste, um jogo de cartas. Você já errou a primeira pergunta! Mas temos de manter o combinado. Vamos, tenho uma pequena tarefa para você.

No final da manhã...

- A sua primeira punição nos tomou o resto da manhã, não há mais tempo para outras discussões.

- Mas será que o professor não me fez uma pergunta relativa a um pequeno detalhe, só para me submeter de imediato ao castigo?

- Sofia, o espírito analista é observador, destrinça enredos e esta habilidade pode ser fonte do mais intenso prazer. Está no conto. Portanto, seja mais observadora, esquadrinhe cada frase, cada diálogo, e poderá até sentir como o personagem da história. Apenas cuidado para não fazer da observação uma necessidade. Até a terça, no Instituto de Letras.

- Até, Clovis.

O primeiro encontro passou, e os contos não foram tão discutidos. Mas nos vimos cada sábado do semestre, lemos outros contos, discutimos sobre teoria, literatura e arte. Claro, tomamos café preparado por mim e a Sofia fez grandes progressos. Ao final do primeiro semestre, ela estava mais experiente, madura, pronta para seguir. Se bem que espero reencontrá-la na turma de literatura inglesa, daqui a alguns semestres.

Na turma seguinte, me chamou especial atenção a Liz, uma aluna que havia passado o ano anterior na Inglaterra estudando inglês. Não pude deixar de tocar no assunto:

- Liz, soube que morou um ano na Inglaterra. E então? Apaixonou-se pelos cafés?

- Claro, tanto que fiz curso de barista e chegando aqui comprei uma cafeteira semi-profissional.

Lá também pude apaixonar-me por literatura estrangeira. Aqui falaremos do Allan Poe?

- Vamos para a sala, Liz. E prepare-se, hoje mesmo sugerirei um conto do Allan Poe.


Autora: eu mesma! :P

2 comentários:

Elvira Costa disse...

Ah! Vê se pode? Um amigo disse que achou que eu me identifiquei com o professor, que eu estaria no papel do professor. Vê se pode? Prefiro acreditar que ele disse isso imaginando que eu tenho o perfil para ocupar uma sala de aula como professora, apenas.

Mas, aproveitando este comentário, descrevo aqui quais foram as condições de produção deste conto:

A PROFESSORA PASSOU COMO UMA DAS AVALIAÇÕES DO SEMESTRE A CRIAÇÃO DE UM CONTO QUE FALASSE DE LITERATURA. ENTÃO, EM UMA FÓRMULA BEM CLICHÊ, EU PENSEI EM COLOCAR O PARSONAGEM PRINCIPAL DO CONTO COMO UM PROFESSOR DE, PASMEM, LITERATURA. A PARTE DO CASO DELE COM AS ALUNAS É SÓ PARA DAR UMA APIMENTADA, DE LEVE, PORQUE NADA FICOU TÃO EXPLÍCITO! EHEH

Thome de Oliveira disse...

Aaaaaaaaah! Você estragou o caso do "caso" com seu comentário aqui, Elvira. Eu estava aqui imaginando quantas pessoas "puras" se pegariam pensando: "Não. Não houve um caso. E eu sequer pensei nisso". Haha!
Mas gostei bastante do conto. Parabéns!